Hotel Lisboa - Oito em ponto, dezasseis e trinta

A grande fachada do hotel é nova e reflecte a luz do dia. As grandes vidraças da recepção têm algo apelativo. A calma que o Hall atapetado faz transparecer é genuína e condiz com o sorriso da recepcionista, impecável na sua farda saia-casaco vermelhas e blusa branca. Mas a calma fica por aí...
Numa entrada mais abaixo, discreta e tão sombria quanto pode ser a entrada de uma garagem, há um gotejar de pessoas que vão chegando e picando o cartão no relógio de ponto, quase a única prova de que foram trabalhar. Num edifício com dez andares à superfície e mais cinco subterrâneos podem passar-se dias inteiros sem que vejamos colegas de trabalho!

O ponto de convergência é no conhecido “-2”. Primeiro porque é onde está o relógio de ponto, e depois porque além da lavandaria, é onde fica o refeitório, o gabinete da governanta e a rouparia, responsável esta pela limpeza e engomagem de fardas e roupa de todo o pessoal do hotel, da cozinha à pastelaria, da recepção aos bagageiros, e ainda dos restaurantes, cafés e empregadas de quartos.

Uma grande maioria dos empregados do hotel entra às 8h., como eu. E com o aproximar da hora é a correria no “-2”. O veste e despe fardas, batas, camisas, saias e casacos. O corredor é pequeno e o refeitório torna-se a sala de convívio para dois dedos de conversa entre o pão com manteiga e o gole de leite com café. Os vestiários são logo ali ao lado.

Às 8h., já estamos a iniciar as tarefas habituais: ligar máquinas, o ferro de engomar, pôr roupa a lavar. A governanta distribui tarefas e andares pelas empregadas de quartos. Recolhe-se roupa de clientes para limpeza a seco...

Na rouparia distribuo lençóis, fronhas, toalhões de banho e de rosto. Pedem-me panos do pó, panos de cozinha, aventais e guardanapos. Vou distribuindo roupa durante as oito horas de trabalho, passando e distribuindo, distribuindo e cosendo.

A lavandaria é mesmo ao lado, oiço as minhas colegas mas não as vejo, tenho que me dirigir à porta que está sempre aberta e pedir:- “Preciso de guardanapos de restaurante! ”- grito eu, com uma entoação bem longe do “exijo”, que a confiança de cinco meses não permite...-“Vamos já passá-los na calandra... ”Calandra?! Nome até bem suave para um monstro de rolo horizontal gigante em que os lençóis entram abertos por um lado e saem passados pelo outro. É só dobrar! São precisas duas colegas e os gestos sistemáticos e ritmados com que o fazem, lembram uma dança medieval, como se fossem fitas e não lençóis.

As pilhas de roupa são separadas, lençóis para um lado, toalhas para o outro, e as máquinas de lavar são carregadas a quatro mãos, para facilitar a tarefa!!!

Nos corredores dos pisos dos quartos evita-se o barulho, mas a correria é igual, apenas as alcatifas abafam os passos apressados. Desmancham-se camas, substituem-se toalhas, lavam-se banheiras, aspira-se o chão, tudo é vistoriado ao ínfimo pormenor. Um cabelo no lavatório dá direito a reclamação.

De vez em quando uma empregada de quarto desce à rouparia para pedir mais toalhas ou lençóis. Entre dentes pragueja baixinho: - O cliente do 707 não sai do quarto, e não vejo que vá sair tão depressa. Quero arrumá-lo e não posso! ”Pergunto-me como saberá ela que o cliente não vai sair tão depressa, mas convenço-me que são segredos da profissão e não faço perguntas. Limito-me a encolher os ombros e a responder o que oiço às mais velhas: - “Está de chuva, eles custam a sair!”

Num piscar de olhos, até porque as manhãs passam depressa, é meio-dia. Hora de almoço. Oh! Trinta minutos sagrados...mas a correria é igual à da hora de serviço. Relógio de ponto, fila para o refeitório, quinze minutos para almoçar, beber o café na rua e fumar três cigarros em trinta minutos requerem um treino especificado. Às vezes ainda sobram três minutos para telefonar...Outras vezes chego três minutos atrasada!

E, geralmente é quando estou atrasada e ainda me encontro no vestiário que alguém precisa de algo urgente. E estou a fechar o cacifo quando oiço chamar pelo meu nome da porta do vestiário, respondo: - “Sim? Quem é?! Mas nem dou tempo de responderem. É a senhora dos Recursos Humanos. Evita ao máximo entrar no vestiário das mulheres, a simpatia e o sorriso de boas-vindas dura apenas a primeira semana dos novos empregados, depois quando algum de nós é chamado ao seu escritório fora dos últimos dias do mês, para assinar os recibos, é sempre com a sensação “de que vamos levar nas orelhas” que subimos ao seu escritório.

Mas afinal, naquele momento, a senhora só precisa de uma farda nova para uma empregada que vai entrar na copa. É a terceira rapariga em um mês.Com ares de “veterana” perante a recruta, tiro-lhe as medidas e arrisco uma jaleca 46 e umas calças médias, mas como na realidade só estou no emprego há dois meses, erro tudo. A jaleca é 44 e as calças são das mais pequenas. Não me mostro constrangida: -“É que a moça engana, não parece tão magra....”

E a empregada nova, com aquele ar de empregada nova: - quieta, gentil e atenta -, acaba por levar as duas medidas: as certas e as sugeridas, não vá o diabo tecê-las e não agradar por teimosia.

A tarde corre e nós com ela. Desejamos que já fosse hora de saída e desejamos que fosse um pouco mais cedo para termos a certeza que há tempo para fazer tudo o que falta.

As empregadas de quarto descem com listas de roupa que precisam, e enchem os carrinhos com lençóis, toalhões, toalhas de rosto, de bidé, fronhas, ect., ect.. Tudo para estar pronto no dia seguinte.

Ainda é preciso verificar os mini-bares, abrir camas e deixar chocolates.

Na lavandaria a roupa para lavar nunca se esgota, mas é preciso passar toda a que secou. Ponho perto do ferro de engomar as cinquenta camisas que terei de passar, no dia seguinte.

O pessoal da pastelaria também se prepara para sair e pedem jalecas, calças e toalhas para o banho.

Quando saímos, o corre-corre do hotel continua. Eu sei que continua, apenas é invisível para mim.

E entendo o que o cliente comum sente em relação a nós!

Isabel Peres / Janeiro 2003

2 comentários:

  1. Gostei de ler-te e saber te assim tão dinamica...:)

    A parte de deixar os chocolates tb gostei,...sabem sempre bem..:))


    Beijo grande

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  2. Muito bom este texto!!!!

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